Os anjos
foram dotados por Deus de inteligência perfeitíssima e, no entanto, pecaram,
revoltando-se contra seu Criador. Mistério do mal... São Miguel, por sua
fidelidade, recebeu em prêmio a missão de proteger a Santa Igreja.
Todos os domingos, um
incontável número de fiéis no orbe católico canta ou recita durante a
celebração da sagrada Eucaristia o símbolo da nossa fé. As verdades de nossa
santa religião são proclamadas, uma após outra, numa inspirada e sublime
síntese, até completar a totalidade da única doutrina da fé: “Assim como a
semente da mostarda contém num pequeníssimo grão um grande número de ramos —
ensina-nos São Cirilo de Jerusalém—, da mesma forma este resumo da fé encerra
em algumas palavras todo o conhecimento da verdadeira piedade contida no Antigo
e no Novo Testamento” (1).
“Creio em Deus Pai
todo-poderoso!” Depois desta primeira e fundamental afirmação, da qual dependem
todos os outros artigos do Credo, proclamamos em seguida “o começo da história
da salvação” (2): “Criador do Céu e da terra!”
O mistério da criação
Deus, Ser absoluto e
eterno, não precisava de nenhuma criatura que Lhe rendesse homenagens e
reconhecesse sua grandeza sem limites. Entretanto, em sua misericórdia, quis
criar, não para aumentar a própria glória, intrínseca e sempiterna, mas para
manifestar seu amor todo-poderoso e “comunicar sua glória” (3) aos seres por
Ele criados, fazendo-os participar de sua verdade, sua bondade e sua beleza.
Uma imensa multidão
de criaturas diversas e desiguais — seres visíveis e invisíveis, inteligentes
ou desprovidos de razão, dispostos numa maravilhosa hierarquia — constituiu
então a Ordem do universo, reflexo da perfeição adorável do Ser infinito, que
só se manifestaria totalmente, na plenitude dos tempos, por seu Filho
Unigênito, Jesus Cristo, o Verbo eterno encarnado.
Explica o Doutor
Angélico que “todo efeito representa algo da sua causa”(4). Assim, em todas as
criaturas podemos encontrar vestígios da eterna Sabedoria que as tirou do nada:
nos astros que enchem as vastidões do firmamento e cujas constelações
encontram-se separadas, às vezes, por milhões de anos-luz; nos diminutos grãos
de areia, jamais iguais entre si, que cobrem desertos e praias; na variedade
assombrosa de vegetais, que vai da “erva do campo que hoje existe e amanhã é
queimada”(Mt 6, 30) às seculares sequóias e jequitibás; no admirável instinto
dos insetos, na fidelidade quase inteligente de um cão, na delicadeza virginal
de um arminho, nos milhares de micróbios que podem pulular numa gota de água...
Mas quis Deus espelhar-se sobretudo no homem, criando-o à sua imagem. E ao
constituí-lo um composto de corpo corruptível e alma imortal, o tornou elo de
ligação entre a matéria e o mundo espiritual.
O mundo angélico
Porém, no alto desta
grandiosa hierarquia, “superando em perfeição todas as criaturas visíveis” (5),
colocou Deus a natureza angélica: espíritos puros, inteligentes e capazes de
amar, cheios da graça divina desde o início de sua existência, na aurora da
primeira manhã da criação. Distribuídos e ordenados por Deus em nove coros (6)
— Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados,
Arcanjos e Anjos — constituem o exército da celeste Jerusalém e receberam a
tríplice missão de perpétuos adoradores da Santíssima Trindade, executores dos
divinos desígnios e protetores do gênero humano.
Imensa e incalculável
é esta corte do Senhor. “Porventura podem ser contadas as suas legiões?”,
pergunta o livro de Jó (25, 3). E o profeta Daniel, abismado, escreveu: “Eram
milhares de milhares os que o serviam, e mil milhões os que assistiam diante
d’Ele” (Dn 7, 10). Entretanto, cada um desses espíritos possui uma
personalidade própria, inconfundível e específica, não havendo sido criado um
igual ao outro (7).
O primeiro dos anjos
A tanta diversidade e
esplendor quis Deus colocar um ápice, um ponto monárquico, um ser que
espelhasse de modo inigualável a luz eterna e inextinguível. Maravilha dentre
as maravilhas, obra-prima do mundo angélico, fulgurava no mais alto dos coros e
todos extasiavam-se diante dele. “Tu és o selo da semelhança de Deus, cheio de
sabedoria e perfeito na beleza; tu vivias nas delícias do paraíso de Deus e
tudo foi empregado em realçar a tua formosura!” (cf. Ez 28, 12-13).
Sendo o primeiro dos
serafins, iluminava todos os espíritos celestes com os reflexos da divindade
que sua inteligência ímpar discernia com o auxílio da graça. Lúcifer era seu
nome: o que levava a luz...
A prova dos espíritos
celestes
Entretanto, antes de
poder contemplar, por toda a eternidade, a essência de Deus, devíamos anjos
passar por uma prova, e apesar da altíssima perfeição da sua natureza, “não
podiam dirigir-se a esta bem-aventurança por sua vontade, sem ajuda da graça de
Deus” (8).
Diante deles a face
do Ser infinito permanecia como que envolta em penumbras e só seus reflexos
eram capazes de alimentar o ardente amor das legiões do Senhor.
Segundo afirmam
Tertuliano, São Cipriano, São Basílio, São Bernardo e outros santos, a prova
que decidiu o destino eterno dos espíritos angélicos foi o anúncio da
Encarnação do Verbo, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, o qual
haveria de nascer da Virgem Maria.
Podemos imaginar,
então, que um frêmito de assombro percorreu as fileiras das milícias celestes
ao conhecerem intuitivamente, por uma ação de Deus, o plano da Salvação: o
Criador eterno, inacessível, todo-poderoso, se uniria hipostaticamente à
natureza humana, elevando-a assim até o trono do Altíssimo; e uma mulher, a Mãe
de Deus, tornar-se-ia medianeira de todas as graças, seria exaltada por cima
dos coros angélicos e coroa da Rainha do universo!
O inexplicável surgia
diante dos anjos como sendo o píncaro e o centro da obra da criação.
A prova havia
chegado. Amar sem entender!
Amar sobre todas as
coisas ao Deus Altíssimo que numa sublime manifestação de seu amor havia tirado
do nada todas as criaturas! Reconhecer, num supremo lance de adoração e
submissão, a superioridade infinita da
Bondade absoluta e eterna!
Era este o ato que
confirmaria os espíritos angélicos na graça divina e os introduziria na visão
beatífica para todo o sempre.
A primeira revolução da
História
Lúcifer, porém,
duvidou diante de um mistério que ultrapassava seu angélico entendimento. Será
que Deus ignorava a natureza perfeitíssima dos anjos e preferia unir-Se a um
ser humano, tão inferior a eles na ordem das criaturas? Ele, o mais alto dos
serafins, seria compelido a adorar um homem? “Esta união hipostática do homem
com o Verbo pareceu-lhe intolerável e desejou que fosse realizada com ele”,
afirma Cornélio a Lápide (9). Sim, só a ele mesmo, Lúcifer, “o perfeito desde o
dia da criação”(Ez 28, 15), deveria Deus unir-Se e deste modo constituí-lo como
o mediador único e necessário entre o Criador e as criaturas. Assim, “aquele
que do nada havia sido feito anjo, comparando-se, cheio de soberba, com o seu
Criador, pretendeu roubar o que era próprio do Filho de Deus”, conclui São
Bernardo (10).
“O anjo pecou
querendo ser como Deus” (11) e o príncipe da luz tornou-se trevas.
Fez-se ouvir o
primeiro grito de revolta da história da criação: “Não servirei! Subirei até o
Céu, estabelecerei o meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei sobre o
monte da aliança! Serei semelhante ao Altíssimo!”(cf. Is 14,13-14).
O defensor da glória de
Deus
Ecoou, então, um
brado no Céu: “Quem como Deus?”
Entre o anjo
revoltado e o trono do Todo-Poderoso erguia-se “um dos primeiros príncipes” (Dn
10, 3), um serafim incomparavelmente mais esplendoroso e forte do que havia
sido “o que levava a luz”.
Quem era este que
ousava desafiar o mais alto dos anjos e agora refulgia invencível, revestido do
“poder da justiça divina, mais forte que toda a força natural dos anjos” (12)?
Quem era este? Chama
viva de amor, labareda de zelo e humildade, executor da divina justiça.
“Quem como Deus?” —
Milhões de milhões dos espíritos celestes repetiram o mesmo brado de
fidelidade.
“Quem como Deus?” —
Este sinal de fidelidade, que em hebraico se diz Mi-ka-el, passou a ser o nome
daquele serafim que por sua caridade ímpar foi o primeiro a levantar-se em
defesa da Majestade ofendida.
Michael, Miguel: nome
que exprime, em sua sonora brevidade, o louvor mais completo, a adoração mais
perfeita, o reconhecimento mais cheio de amor da transcendência divina e a
confissão mais humilde da contingência da criatura.
A primeira batalha de uma guerra eterna
“Houve no Céu uma
grande batalha”(Ap 12, 7). Luta entre anjos e demônios, luta da luz contra as
trevas, da fidelidade e contra a soberba, da humildade e da ordem contra o
orgulho e a desordem. “Miguel e os seus anjos pelejavam contra o dragão, e o
dragão com os seus anjos pelejavam contra ele” (Ap 12, 7).
Satanás, desvairado
de orgulho e “obstinado em seu pecado” (13), “arrastou a terça parte” (Ap 12,
4) dos espíritos angélicos, submergindo-os consigo nas trevas eternas da
revolta.
Porém, estes não
prevaleceram, nem o seu lugar se encontrou mais no Céu. Foi precipitado aquele
grande dragão, que se chama demônio e Satanás, e foram junto com ele os seus
anjos (cf. Ap 12, 8-9) nos abismos tenebrosos do inferno (cf. 2Pd 2, 4).
Um imenso clamor
encheu o universo: Como caíste do céu, ó astro resplandecente, que no nascer do
dia brilhavas? (cf. Is 14, 12). A tua soberba foi abatida até os infernos! (cf.
Is 14, 11).
E enquanto o serafim
revoltado era visto “cair do céu como um relâmpago”(Lc 10, 18) e ser condenado
ao fogo inextinguível, “preparado para ele e os seu anjos” (Mt 25, 41), São
Miguel era elevado pelo Rei eterno ao píncaro da hierarquia dos anjos fiéis e
se tornava o “gloriosíssimo príncipe da milícia celeste”, como é designado pela
liturgia da Santa Igreja Católica.
O novo campo de batalha
Restabelecida a ordem
nos céus angélicos, o campo de batalha onde prosseguiu a luta entre a luz e as
trevas passou a ser a terra dos homens.
O anjo destronado
conseguiu seduzir nossos primeiros pais a pecarem, como ele, contra o
Altíssimo, querendo ser como deuses (cf. Gn 3,5), e o Senhor Deus declarou
guerra ao tentador: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua
descendência e a dela” (Gn 3, 15).
A partir deste
momento uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história da
humanidade. Iniciada na origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as
palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para
aderir ao bem (14).
Neste combate, além
das armas decisivas da graça de Deus, que recebemos superabundantemente por
meio dos sacramentos, contam os homens com o auxílio e a proteção dos anjos. E
ao príncipe da Jerusalém celeste corresponde a capitania de todas as legiões
angélicas na luta contra as forças do inferno, pela salvação das almas. Assim,
São Miguel continua na terra aluta triunfal que iniciou no Céu.
Protetor do povo eleito
e da Santa Igreja
Foi São Miguel o anjo
tutelar do povo de Israel.
Nas Sagradas
Escrituras, é ele mencionado pela primeira vez no livro de Daniel. Este
profeta, ao escrever as revelações recebidas do anjo Gabriel sobre o combate
para libertar a nação eleita da servidão aos persas, afirma que ninguém a
defenderá “a não ser Miguel, vosso príncipe” (Dn 10, 22).E acrescenta ao narrar
as tribulações de épocas vindouras: “Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande
príncipe, o protetor dos filhos de seu povo” (Dn 12, 1).
O serafim da
fidelidade não cessou de proteger o povo de Israel e velar pela fé da Sinagoga
até o momento supremo da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Escureceu-se o sol e
houve trevas, aterra tremeu, fenderam-se as rochas e o véu do Templo —
monumental tecido de jacinto, púrpura e escarlate que cobria a entrada do
impenetrável “Santo dos Santos” — rasgou-se em duas partes, de alto a baixo
(cf. Mt 27,51; Mc 15, 38; Lc 23, 45). Narra-nos o famoso historiador judeu,
Flávio Josefo, que depois desses acontecimentos os próprios sacerdotes do
Templo escutaram dentro do recinto sagrado uma misteriosa voz que clamava
repetidas vezes: “Saiamos daqui!” (15).
São Miguel, a
sentinela de Israel, abandonava definitivamente o Templo da Antiga Aliança,
inútil agora, porque o único e verdadeiro sacrifício acabava de consumar-se no
alto do Calvário. Do coração trespassado do Cordeiro Imaculado nascia a Santa
Igreja, Corpo Místico de Cristo, Templo eterno do Espírito Santo. E a partir
desse instante, Miguel o triunfador, o primeiro adorador do Verbo encarnado,
tornou-se também o vigilante protetor da única Igreja de Deus.
A este respeito
escreveu o cardeal Shuster: “Depois do ofício de pai legal de Jesus Cristo, que
corresponde a São José, não há na terra nenhum ministério mais importante e mais sublime do que o
conferido a São Miguel: protetor e defensor da Igreja” (16).
1) Cathecheses Iluminandorum, in CIC, 186.
2 ) CIC, 280.
3 ) CIC, 319.
4 ) Suma
Teológica, I, q. 45, a. 7.
5 ) CIC, 330.
6 ) Cf. Suma
Teológica I, q. 108, a. 5.
7 ) Cf. Idem, I,
q. 50, a. 4.
8 ) Idem, I, q.
62, a. 2.
9 ) A. Bernet, Enquête sur les Anges, Librairie
Académique Perrin, 1997, p. 43.
10 ) Obras
Completas, BAC, Madrid, 1953, vol. 1, p. 215.
11 ) Suma
Teológica I, q. 65, a. 5.
12 ) Idem I, q.
109, a. 4.
13 ) Idem, I, q.
64, a. 2.
14 ) Gaudium et
spes, 37, 2.
15 ) Cf. História
dos hebreus, Editorial das Américas, São Paulo, 1963, vol. 8, p. 304.
16) Año Cristiano, BAC, Madrid,
2002, vol. 9, p. 266.
Pe. Pedro Morazzani
Arráiz, E.P.
Revista arautos do
Evangelho, Número 69, Setembro 2007
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