"Escravo dos
africanos para sempre", foi o programa de vida desse jovem missionário
jesuíta que batizou mais de 300 mil negros escravos ao longo de 35 anos de
labor apostólico.
Certo dia da segunda metade do ano do Senhor de
1610, as grandes e amareladas velas do galeão "São Pedro" eram
recolhidas e suas âncoras tocavam o fundo de uma bela baía. A tripulação
inteira abeirava-se do parapeito e contemplava com curiosidade e admiração a
cidade de Cartagena, na província da Nova Granada (atual Colômbia), que se
apresentava deslumbrante diante dos seus olhos, com suas enormes muralhas de
pedra branca brilhando sob o causticante sol tropical. O azul profundo do céu
refletiase nas águas mansas e cálidas do porto, onde se balançava graciosamente
um sem-número de embarcações de todo tipo e tamanho.
Dentre a pitoresca multidão de marinheiros e
passageiros que se apressavam em desembarcar do galeão recém-chegado,
destacavam- se singularmente as negras batinas de quatro religiosos: três
sacerdotes e um noviço da ordem fundada, não havia muito tempo, por Inácio de
Loyola: a Companhia de Jesus. Dos três presbíteros, a História não perpetuou os
nomes. Religiosos desconhecidos, como centenas de milhares que imolaram suas
vidas seguindo os passos do Mestre Divino, anônimos para os homens e filhos
prediletos de Deus. O noviço, porém, de fisionomia austera, silencioso, um
tanto retraído e quase passando despercebido, marcou com sua vida a história da
América do Sul e brilhará para sempre no firmamento da Igreja: São Pedro
Claver.
A aurora de uma
vocação
Nascido em Verdú, pequena cidade espanhola da
Catalunha, em 1580, Pedro Claver sentiu- se chamado para a vida religiosa desde
tenra infância. Aos 22 anos de idade, bateu às portas do noviciado da Companhia
de Jesus.
Dois anos mais tarde, a fim de completar os
estudos de Filosofia, foi enviado por seus superiores ao Colégio de Montesion,
na ilha de Maiorca. Deu-se, então, um providencial encontro que marcaria de modo
indelével a vida de Pedro e firmaria definitivamente sua vocação.
Nesse colégio habitava um venerável ancião,
simples irmão coadjutor e porteiro da casa, que séculos depois seria canonizado
e viria a ser uma das glórias da Ordem: Santo Alonso Rodríguez.
Desde o primeiro instante em que os límpidos
olhos do santo porteiro penetraram o coração do noviço, discerniu o ancião a
vocação do jovem e um profundo e sobrenatural relacionamento uniu então aquelas
duas almas.
"O que devo fazer para amar verdadeiramente
a Nosso Senhor Jesus Cristo?" - perguntava o estudante. E Santo Alonso não
se contentava em dar um simples conselho, mas descortinava os ilimitados
horizontes da generosidade e do holocausto: "Quantos que vivem ociosos na
Europa, poderiam ser apóstolos na América! Não poderá o amor de Deus sulcar
esses mares que a cobiça humana soube cruzar? Não valem também aquelas almas a
vida de um Deus? Por que tu não recolhes o Sangue de Jesus Cristo?" As
ardentes palavras do velho porteiro acenderam labaredas de zelo que acabariam
por consumir o coração de Pedro Claver.
Nessa época, o irmão Alonso foi favorecido por
Deus com uma mística visão: sentiu-se arrebatado até o Céu onde contemplou
incontáveis tronos ocupados pelos bem-aventurados e, no meio deles, um trono
vazio. Escutou uma voz que lhe dizia: "É este o lugar preparado para teu
discípulo Pedro, como prêmio de suas muitas virtudes e pelas inúmeras almas que
converterá nas Índias, com seus trabalhos e sofrimentos".
Missionário e
sacerdote
No dia 23 de janeiro de 1610, o superior
provincial, atendendo a seus pedidos, enviou-o como missionário à tão anelada
América do Sul. E no final desse mesmo ano, após longa travessia, aportou na
cidade de Cartagena, uma das mais importantes do Império Espanhol do além-mar.
Teminada sua formação teológica na casa de
formação dos jesuítas na província da Nova Granada, recebeu finalmente o
Sacramento da Ordem no dia 19 de março de 1616 e celebrou sua primeira Missa
diante da imagem da Virgem dos Milagres a quem professaria sempre uma ardorosa
e filial devoção.
O campo de batalha
A cidade de Cartagena constituía, nessa época,
um dos pontos principais de comércio entre a Europa e o novo continente, e
juntamente com Veracruz, no México, eram os dois únicos portos autorizados para
a introdução de escravos africanos na América Espanhola. Calcula-se que cerca
de dez mil escravos chegavam anualmente a esta cidade, trazidos por mercadores,
geralmente portugueses e ingleses, que se dedicavam a este vil e cruel comércio.
Esses pobres seres, arrancados das costas da
África, onde viviam no paganismo e na barbárie, eram trazidos no fundo dos
porões dos navios para serem vendidos como simples objetos e finalmente
destinados ao trabalho nas minas e nas fazendas onde, depois de haver vivido
sem esperança, morriam miseravelmente sem o auxílio da religião.
Converter esses milhares de infelizes cativos e
lhes abrir as portas do Céu, foi a missão à qual Pedro Claver consagrou toda a
sua existência.
Assim, quando chegou o grandioso e esperado
momento de emitir os votos solenes, pelos quais se comprometia a ser obediente,
casto e pobre até a morte, assinou o documento com a fórmula que doravante
seria a síntese de sua vida: Petrus Claver, æthiopum semper servus. -
"Pedro Claver, escravo dos africanos para sempre". Tinha 42 anos de
idade.
O escravo dos
escravos
Quando um navio carregado de escravos chegava ao
porto, o Padre Claver acorria imediatamente numa pequena embarcação, levando
consigo uma grande provisão de biscoitos, frutas, doces e aguardente.
Aqueles seres embrutecidos por uma vida selvagem
e exaustos pela viagem realizada em condições desumanas, olhavam-no com temor e
desconfiança. Mas ele os saudava com alegria e por meio de seus auxiliares e
intérpretes negros - tinha mais de dez - dizia-lhes: "Não temais! Estou
aqui para vos ajudar, para aliviar vossas dores e doenças." E muitas
outras frases consoladoras. Porém, mais que as palavras, falavam suas ações:
antes de mais nada, batizava as crianças moribundas; depois recebia em seus
braços os enfermos, distribuía a todos bebidas e alimentos e fazia- se servo
daqueles desventurados.
Árdua catequese
Levando em sua mão direita um bastão encimado
por uma cruz e um belo crucifixo de bronze pendurado no pescoço, saía Pedro
Claver todos os dias para catequizar os escravos. Calores extenuantes, chuvas
torrenciais, críticas e incompreensões até dos próprios irmãos de vocação, nada
arrefecia sua caridade.
Com freqüência batia nos pórticos senhoriais da
cidade pedindo doces, presentes, roupas, dinheiro e almas decididas que o
auxiliassem em seu duro apostolado. E não poucas vezes nobres capitães,
cavaleiros e senhoras ricas e piedosas o seguiam até as míseras moradias dos
escravos.
Entrando nesses lugares, seu primeiro cuidado
dirigia-se sempre aos doentes. Lavava-lhes o rosto, curava suas feridas e
chagas e repartia comida aos mais necessitados. Apaziguadas as penalidades do
corpo, reunia então a todos em torno de um improvisado altar, os de um lado e
as mulheres de outro, e iniciava a catequese que ele sabia colocar
maravilhosamente ao alcance da curta inteligência dos escravos. Pendurava à
vista de todos uma tela pintada com a figura de Nosso Senhor crucificado, com
uma grande fonte de sangue correndo de seu lado ferido; aos pés da Cruz, um
sacerdote batizava com o Sangue Divino vários negros, os quais apareciam belos
e brilhantes; mais abaixo, um demônio tentava devorar alguns negros que ainda
não haviam sido batizados.
Dizia-lhes, então, que deveriam esquecer todas
as superstições e ritos que praticavam nas tribos e lugares de origem, e lhes
repetia isso muitas vezes.
Depois lhes ensinava a fazer o sinal da- cruz e
lhes explicava paulatinamente os principais mistérios da nossa Fé: Unidade e
Trindade de Deus, Encarnação do Verbo, Paixão de Jesus, mediação de Maria, Céu
e inferno.
Pedro Claver compreendia bem que aquelas
mentalidades rudes não podiam assimilar idéias abstratas sem a ajuda de muitas
imagens e figuras. Por isso lhes mostrava estampas nas quais estavam pintadas
cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, representações do Paraíso e
do inferno.
Batizou mais de 300
mil escravos
Após inúmeras jornadas de árdua evangelização,
batizava-os finalmente. Para celebrar este Sacramento utilizava uma jarra e uma
bacia de fina porcelana chinesa, e queria que os escravos estivessem limpos.
Introduzia seu crucifixo de bronze na água, abençoava-a e dizia que agora
aquele líquido era santo, e que após serem lavadas nessa água suas almas se
tornariam mais refulgentes que o sol. Calcula-se que ao longo de sua vida São
Pedro Claver batizou mais de 300 mil escravos. Aos domingos, percorria ruas e
estradas da região chamando-os à santa Missa e ao sacramento da Penitência.
Dias havia que passava a noite inteira confessando os pobres escravos.
Reflexos de um imenso
amor
Sua ardente e inextinguível sede de almas era
apenas o transbordamento visível das labaredas interiores que consumiam a alma
deste discípulo de Cristo. Significativos indícios levantam u m tanto o véu que
cobriu durante sua vida o altíssimo grau de união com Deus que ele havia
atingido.
"Todo o tempo livre de confessar,
catequizar e instruir os negros, dedicava- o à oração", narra uma
testemunha. Repousava diariamente apenas três horas, e passava o resto da noite
de joelhos em sua cela ou diante do Santíssimo Sacramento, em profunda oração,
muitas vezes acompanhada de místicos arroubos. Grande adorador de Jesus-Hóstia,
preparava-se todos os dias durante uma hora antes de celebrar o Sacrifício do
Altar, e permanecia em ação de graças meia hora após a Missa, não permitindo
que ninguém o interrompesse nesses períodos.
Ilimitada também era sua devoção a Nossa
Senhora. Rezava o Rosário completo todos os dias, ajoelhado ou andando pelas
ruas da cidade, e não deixava passar nenhuma festa d'Ela sem organizar solenes
celebrações, com música instrumental e coral.
Longo calvário
Aquele varão, que tinha passado a vida fazendo o
bem, que tantas dores havia aliviado e tantas angústias consolado, teve de
padecer, como seu Divino Modelo, indizíveis tormentos físicos e morais antes de
ser acolhido na glória celeste.
Após 35 anos de intensíssimo labor apostólico e
70 de idade, caiu gravemente enfermo. Pouco a pouco foram-se paralisando as
extremidades de seus membros, e um forte tremor agitava continuamente seu corpo
extenuado. Tornou-se "uma espécie de estátua da penitência com as honras
de pessoa", relata uma testemunha.
Os últimos quatros anos de existência terrena,
ele os passou imobilizado na enfermaria do convento. E, por incrível que
pareça, este homem que havia sido a alma da cidade, o pai dos pobres e o
consolador de todas as desventuras, foi completamente olvidado por todos e
submergido no esquecimento e no abandono.
Passava os dias, os meses e os anos em
silenciosa meditação, contemplando da janela da enfermaria a imensidade do mar
e escutando a melodia das ondas que se rompiam contra as muralhas da cidade. A
sós com a dor e com Deus, aguardava o momento do supremo encontro.
Um jovem escravo fora designado pelo superior da
casa para cuidar do doente. Entretanto, esse que deveria ser enfermeiro não
passava de bruto algoz. Comia a melhor parte dos alimentos destinados ao
paralítico e "um dia o deixava sem bebida, outro sem pão, muitos sem
comida", segundo conta uma testemunha da época. Também "o martirizava
quando o vestia, governando-o com brutalidade, torcendo-lhe os braços, batendo
nele e tratando-o com tanta crueldade como desprezo". Porém, nunca seus
lábios proferiram a menor queixa. "Mais merecem minhas culpas",
exclamava às vezes.
Glória já nesta
terra: "Morreu o santo!"
Certo dia de agosto de 1654, disse Claver a um
irmão de hábito: "Isto se acaba. Deverei morrer num dia dedicado à
Virgem". Na manhã de 6 de setembro, à custa de um imenso esforço, fez- se
conduzir até a igreja do convento e quis comungar pela última vez. Quase se
arrastando, aproximou-se da imagem de Nossa Senhora dos Milagres, diante da
qual havia celebrado a sua primeira Missa. Ao passar pela sacristia, disse a um
irmão: "Morro. Vou morrer. Posso fazer algo por vossa reverência na outra
vida?" No dia seguinte, perdeu a fala e recebeu a Unção dos Enfermos.
Sucedeu, então, algo de extraordinário e
sobrenatural. A cidade de Cartagena pareceu acordar de uma longa letargia e por
todos os lados corria a voz: "Morreu o santo!" E uma multidão
incontenível dirigiu-se para o colégio dos jesuítas, onde agonizava Pedro
Claver. Todos queriam oscular suas mãos e seus pés, tocar nele rosários e
medalhas. Distintas senhoras e pobres negras, nobres, capitães, meninos e
escravos desfilaram nesse dia diante do santo, que jazia sem sentidos em seu
leito de dor. Só às 9 horas da noite os padres conseguiram fechar as portas e
assim conter aquela piedosa avalanche.
E assim, entre 1h e 2h da madrugada de 8 de
setembro, festa da Natividade de Maria, com grande suavidade e paz, o escravo
dos escravos adormeceu no Senhor.
Revista Arautos do Evangelho, Set/2005, n. 45, p. 20 à 23
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