São Tomás de Aquino, secundado por outros insignes
autores, busca esclarecer essa dúvida que surge do episódio do
Getsêmani e outros trechos das Escrituras.
É doutrina bem conhecida que todo homem tem um anjo da
guarda. Não seria estranho, pois, que surgisse a seguinte indagação:
o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo ao mesmo tempo Deus e
homem — é este o mistério da Encarnação — teve também um
anjo da guarda?
Os anjos nada tinham a ensinar a Jesus
Os anjos são, em relação a nós, como irmãos maiores
encarregados pelo Pai comum de conduzir-nos rumo à Pátria Celeste.
Têm a missão de guiar-nos e de remover, em misteriosa medida, os
obstáculos do caminho. Sua “custódia” não consiste numa
atividade de assistência e de defesa exercida pelo subalterno, mas
numa espécie de tutela protetora que se adapta à nossa liberdade
humana e que será tanto mais eficaz quanto mais nela nos apoiarmos
com confiança e boa vontade.
Nessas condições, vê-se que Nosso Senhor não podia
ter um anjo da guarda propriamente dito.
A principal ocupação do anjo da guarda, diz-nos São
Tomás, é iluminar nossa inteligência: “A guarda dos anjos tem
como efeito último e principal a iluminação doutrinal” (Suma
Teológica I, q. 113, a. 5, ad 2). Ora, Nosso Senhor, mesmo em Sua
ciência humana, não tinha como ser iluminado pelos anjos.
Os teólogos reconhecem três espécies de ciência na
santa alma de Jesus Cristo, em Sua vida mortal: a ciência da visão
beatífica, a ciência infusa e a ciência adquirida.
Pelas duas primeiras, Ele ultrapassava em profundidade e
extensão de saber qualquer criatura, sem exceção: “Deus fez seu
Cristo tanto mais superior aos anjos” (Hb 1, 4). Sob esse duplo
aspecto, os anjos nada tinham a ensinar-Lhe.
Quanto à ciência adquirida ou experimental, que
progrediu em Nosso Senhor com a idade, Cristo não tinha necessidade
do socorro dos anjos para instruí-Lo sobre os diversos objetos que
se ofereciam aos seus sentidos no grande livro do universo.
Entretanto, o serviço dos anjos Lhe convinha
Mas, embora Nosso Senhor tivesse pleno poder sobre as
criaturas e, por conseguinte, pudesse obter diretamente tudo quanto
fosse necessário à Sua vida corporal, o serviço dos anjos Lhe
convinha a duplo título. Por um lado, essa assistência material —
do mesmo modo que os cuidados com alimentação e vestuário
prestados ao Menino-Deus por José e Maria, e depois ao pregador do
Evangelho pelas santas mulheres — essa assistência dos anjos era
conforme ao exterior de fraqueza e debilidade com que o Verbo feito
carne tinha querido Se cobrir.
Por outro lado, não era conveniente que, antes mesmo de
Cristo entrar na glória, os anjos já Lhe testemunhassem — por
suas piedosas homenagens internas, e mesmo por discretas
manifestações exteriores — que O reconheciam como seu Mestre e
seu Rei?
A solução de São Tomás de Aquino
São Tomás não admite que Nosso Senhor teve um anjo da
guarda no sentido estrito da palavra, porque o papel do “anjo da
guarda”, que é propriamente o de dirigir e proteger, não podia
ter por objeto a santa humanidade do Salvador.
Mas o grande Doutor se exime de rasgar o Evangelho e de
negar o serviço dos anjos a Nosso Senhor. Os autores sagrados não
explicam o modo habitual de funcionamento desse serviço, mas
assinalam diversos atos significativos (Lc 2, 13; Mt 4, 11; 26, 53)
os quais parecem indicar que Nosso Senhor teve, não um só anjo, mas
uma falange de espíritos bem-aventurados ligados ao serviço e à
assistência da Sua santa humanidade.
A posição dos anjos em relação à santa humanidade
de Nosso Senhor está muito bem expressa por estas palavras do Doutor
Angélico: “Não era de um anjo da guarda, enquanto superior, que
Ele necessitava; mas de um anjo que O servisse como inferior. Daí o
que se diz no Evangelho de Mateus (4, 11): ‘Aproximaram-se anjos
que O serviam’” (Suma Teológica I, q. 113, a. 4 ad 1).
Era o papel de ministros, não o de guardiões, que os
anjos tinham a exercer junto do Verbo encarnado: não eram custódios,
mas servidores.
O episódio do Getsêmani
O episódio do Getsêmani mostra, é verdade, uma
dificuldade especial: “Apareceu-Lhe então um anjo do Céu para
confortá-Lo” — diz o texto sagrado (Lc 22, 43). Como pôde o
anjo reconfortar Nosso Senhor, isto é, reanimar Sua coragem,
trazer-Lhe um socorro moral?
São Tomás coloca muito bem a objeção: deste fato —
nota o santo Doutor — não se deduz que Cristo foi instruído pelos
anjos, visto que “somos reconfortados pelas palavras de exortação
de quem ensina”? A esta dificuldade ele mesmo responde: “o
conforto recebido do anjo não se deu a modo de instrução, mas para
manifestar a veracidade de Sua natureza humana” (Suma Teológica
III, q.12, a. 4, ad 1).
Essa explicação, temos de confessar, não satisfaz
completamente o espírito. Pois nela aparece o porquê da intervenção
angélica nessa hora tão penosa do Getsêmani, mas o como escapa. E,
a menos que se considere como um simples gesto simbólico o
reconforto trazido pelo anjo a Nosso Senhor, a dificuldade parece
subsistir.
Por isso os autores se aplicam a levar adiante a
explicação.
O anjo pôs em obra motivos de reconforto
Pode-se dizer que o anjo proporcionou algo como um
reconforto moral à alma de Nosso Senhor, delicada entre todas, e tão
sensível às manifestações de afeição quanto aos abandonos, às
traições e aos ultrajes.
Assim, o papel do anjo não foi (o que seria
inadmissível) de propiciar à alma de Nosso Senhor alguma
“iluminação” verdadeira, de revelar-Lhe alguma coisa de novo
para reanimar Sua coragem. Mas, seja por meio de uma palavra
exterior, seja por uma ação interior sobre a imaginação e a
memória do Messias, o anjo pôs em obra motivos de reconforto que o
Deus Salvador conhecia bem, mas que Ele tinha afastado de uma maneira
mais ou menos direta da aplicação de seu espírito; pois, a fim de
beber até o fim o cálice de amargura, o augusto Redentor, no
momento supremo da Paixão, se aplicava a considerar toda a extensão
e toda a profundidade dessa Paixão expiatória.
De toda parte caíam sobre Ele horríveis visões e
pensamentos acabrunhantes, provocando no Seu coração e na Sua carne
angústias inexprimíveis: “Cercaram-me dores de morte, e torrentes
de iniqüidade me conturbaram” (Sl 17, 5). Veio então o anjo
evocar ao olhar de Jesus as mais doces representações.
“Ah ! Sem dúvida — diz um piedoso autor —, esse
celeste mensageiro chama a atenção do Salvador sobre as virtudes
magníficas que iriam germinar de seu sangue divino; ele evoca o
quadro profético desses admiráveis cortejos de virgens, de
mártires, de confessores, de amigos fiéis e de verdadeiros
arrependidos de ambos os sexos, de toda categoria e de todas as
idades, que, apesar de muitas fraquezas, terão por Jesus um amor
sincero e ardoroso e se esforçarão ao máximo para oferecer a seu
bom Mestre reparação por tantos sofrimentos e feridas.”
(Traduzido, resumido e adaptado de L’Ami du Clergé,
nº 50, 1911, p. 1111-1113.)
Revista Arautos do Evangelho n. 72 dezembro 2007
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